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Gabriel Garcia Marquez

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

A Modinha e o lundu no Brasil

Com o crescimento populacional que vinha se acentuando
desde o início do século XVIII e a formação de centros
urbanos (tais como Salvador, Ouro Preto, Rio
de Janeiro, dentre outros), a demanda por um certo
tipo de entretenimento por parte de uma classe média
emergente era condição imperiosa para a manutenção
de um modelo de cultura que a metrópole, no caso
Portugal, vinha impondo à colônia.
Antes dos concertos públicos, que só viriam
a acontecer no início do século XIX em Portugal (Nery,
1991) e mais tardiamente no Brasil, o lazer era
praticado de diversas maneiras, tanto na Corte quanto
na colônia: as óperas, encenadas desde o século XVIII;
as festas profanas, tais como aniversários de cidades,
membros da família real ou alguma figura importante
pertencente à classe dominante; as festas religiosas,
que também tinham funções sociais.
Uma outra forma de entretenimento que vinha
sendo praticada no Brasil desde meados do século
XVIII era a música patrocinada por proprietários
de posses, que mantinham orquestra formada por
escravos negros especialmente treinados para
executarem os mais diversos instrumentos (violinos,
viola, teclado, charamelas, dentre outros).
As músicas que interpretavam eram os sucessos
europeus que nos chegavam às mãos (Kiefer, 1982).
Porém, tais eventos ocorriam em recintos fechados
e para convidados especiais.
As primeiras manifestações da
música popular urbana no Brasil
EDILSON VICENTE DE LIMA
 Domingos Caldas Barbosa.
1ª edição da obra Viola de Lereno. Lisboa.
Na Officina Nunesiana.
Anno 1798.
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE OBRAS RARAS


Os saraus praticados pelas elites, entre os séculos
XVIII e XIX, também foram formas de lazer, e, por
conseguinte, de divulgação da música cultivada pela
classe média em sua vida cotidiana. Era o local onde
músicos amadores e profissionais podiam se irmanar,
tocando ou cantando suas peças preferidas.
Era também a oportunidade para as moças das finas
famílias exibirem seus dotes ao teclado, ou sua
encantadora voz acompanhada pela delicadeza
do dedilhado na guitarra (Nery, 1994).
Portanto, o gosto pela música e, por conseqüência,
pelo canto, parece ser uma constante na cultura dos
europeus vindos para o Brasil. O negro, por sua vez
e mesmo em condições sub-humanas, sempre cultivou
a música, seja em sua forma ritualística longe dos olhos
ocidentais, ou como divertimento nos terreiros e praças
públicas. Desta forma, sem querer adentrar
as discussões sociológicas quanto às condições sociais
das diversas camadas que residiam no Brasil
em meados do século XVIII, ainda que altamente
europeizada, a colônia, aos poucos, foi construindo
seu próprio caminho musical à medida que as vilas
se desenvolviam.
É nesse ambiente e condições sociais que, nos
últimos anos do século XVIII, surge a modinha,
um tipo especial de canção que será cultivada tanto em
Portugal quanto no Brasil. Esta designa um tipo de
canção lírica, singela e de duração reduzida, composta
para uma ou duas vozes acompanhadas por guitarra
ou teclado. Cultivada, inicialmente, pelas classes mais
abastadas, aos poucos, vai se popularizando, até tornarse,
pouco a pouco, um veículo para a expressividade
musical, tanto portuguesa quanto brasileira.
As discussões pela definição da paternidade da
modinha parecem infrutíferas já que, a despeito da sua
origem e seu surgimento, vai ser adotada pelas duas
pátrias como filha legítima. Mais do que o local
de nascimento, é a trajetória e a aceitação por uma
determinada nação que definem uma nacionalidade.
Porém, a origem da modinha está intimamente
relacionada com a moda portuguesa, sua antecessora,
que em meados do século XVIII, designava,
genericamente, qualquer tipo de canção e era praticada
nos salões de Lisboa pelas classes mais favorecidas
(Araújo, 1963). No Brasil, a palavra moda assume duas
acepções diferentes: qualquer tipo de canção, como em
Portugal; e moda de viola, gênero de canção muito
praticada em São Paulo e Minas Gerais (idem, 1963).
Ao absorver dessa última as características formais
e melódicas, a modinha se configura de maneira muito
rica, não assumindo uma forma específica.
Caracteriza-se, também, por ser mais curta, mais
singela, delicada e, sobretudo, pelo tema amoroso.
Mário de Andrade, no texto introdutório de sua
antológica publicação de 1930, Modinhas Imperiais,
defende que o diminutivo “modinha” está intimamente
relacionado com as características “acarinhantes” tão
presentes na cultura luso-brasileira: “Chamam-lhe
Modinhas por serem delicadas” (Andrade, 1980). Esta
característica, por sua vez, é descrita com muita graça
no refrão da modinha “Quando a gente está com
a gente”, de Domingos Schiopetta, músico que atuou
em Lisboa entre o século XVIII e XIX: “Nós, lá no
Brasil, com nossa ternura/ Açúcar nos sobe com tanta
Álbum de Modinhas, da coleção de modinhas imperiais da Divisão
de Música e Arquivo Sonoro da FBN. Neste número, Despedida,
de José Lino de Almeida Fleming. Narciso e Cia. s/d.
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE MÚSICA E ARQUIVO SONORO

doçura/ Já fui à Bahia, já passei no mar,/ Coisinhas que
vi me fazem babar”.
No final do setecentos, literatos e cronistas
portugueses diferenciavam a modinha portuguesa
da brasileira e atribuíam a esta características próprias
advindas da colônia, no caso, o Brasil. O pesquisador
português Manuel Morais descreve algumas delas:
melodia ondulante, cromatismos melódicos
e acompanhamento singelo (Morais, 2000). Poderíamos
acrescentar: melodias entrecortadas e compostas
de motivos sincopados, ora em retardo, ora em
antecipação, abuso de cadências femininas, porém,
sempre primando por uma certa delicadeza
(Lima, 2001).
O etnomusicólogo Gerard Béhague, em seu
pioneiro artigo sobre o manuscrito Modinhas do Brasil,
que se encontra na Biblioteca da Ajuda em Lisboa
(Béhague, 1968), destaca ainda aspectos poéticos que
considera característicos do estilo brasileiro
e, sobretudo, de Caldas Barbosa. Identifica dois
poemas utilizados nas modinhas desta coleção como
sendo de sua autoria: Eu nasci sem coração e Homens
errados e loucos. Domingos Caldas Barbosa, padre,
também conhecido pelo nome árcade de Lereno
Selinuntino, foi poeta, cantor de modinhas, exímio
improvisador e, naturalmente, tangia sua própria
viola-de-arame. Migrou para Lisboa e lá viveu
no último quartel do século XVIII até sua morte.
Tornou-se muito popular na corte por sua atuação
como poeta e cantor de modinhas.
Seu livro, Viola de Lereno, uma coletânea
de poemas em dois volumes, sugere letras de modinhas
e lundus de sua própria lavra. Teve várias publicações
em Lisboa entre 1798 e 1823 e uma na Bahia, em 1813.
Nele, podemos encontrar o estilo que Caldas Barbosa
utilizou em seus poemas e que muito se assemelham
ao estilo de vários textos encontrados no manuscrito
Modinhas do Brasil acima citado: neologismos
afro-brasileiros, como “mugangueirinha”, além
de diminutivos como “enfadadinha” e “negrinho”;
também os vocábulos “sinhá” e “nhanhá”, tratamento
que os escravos dispensavam às senhoras e senhoritas
nessa época, bem ao gosto do vocabulário popular
praticado na colônia. Caldas Barbosa gozou de grande
sucesso no período em que viveu na corte onde era
muito comum apresentar-se acompanhado por sua
viola e cantando modinhas.
Com base na análise poético-musical efetuada no
manuscrito da Biblioteca da Ajuda e da obra de Caldas
Barbosa, Béhague sugere que, se não todas
as modinhas da coleção, grande parte delas é de
Domingos Caldas Barbosa. Destaca as características
musicais consideradas brasileiras presentes em muitas
modinhas desse manuscrito, sobretudo a frase
sincopada, que no caso dessas peças, aparece
totalmente incorporada ao estilo musical, indicando
uma prática adquirida naturalmente, ou seja,
pela convivência, e não pelo resultado de estudos
técnico-analíticos.
No estágio em que se encontram as pesquisas
sobre a modinha e o lundu, tanto no Brasil quanto
em Portugal, encontramos vários poemas de Domingos
Caldas Barbosa musicados por compositores de
renome, tais como Marcos Portugal (1762-1830),
compositor lisboeta que se transferiu para o Brasil
em 1811 e aqui permaneceu até sua morte;
e Antônio Leal Moreira (1758-1819), outro músico
português de renome em Lisboa no final do século
XVIII, só para citar alguns nomes. Outras tantas
modinhas sobre poemas seus, não trazem assinatura
do compositor da melodia, porém é muito provável
que Caldas Barbosa compusesse música de “ouvido”,
e por isso não tivesse o hábito de assinar suas
composições, pois consta que não era iniciado
nos cânones musicais (Sandroni, 2001).
Fato é que, na documentação pesquisada até
o presente momento, há uma grande quantidade
de modinhas que se destacam por possuir uma
musicalidade muito própria: melodias sinuosas de
poucos compassos e compostas por pequenos motivos,
a presença da síncopa melódica, o acompanhamento
em arpejos de quatro colcheias, parafraseando
as batidas do nosso atual pandeiro ou ganzá. Insisto
nestas características pois elas serão associadas
ao universo afro-brasileiro e estão na base de gêneros
como o choro, o maxixe e samba (Béhague, 1968).
Neste aspecto, o manuscrito Modinhas do Brasil
é de fundamental importância, pois, das trinta
modinhas que compõem a coleção, várias trazem
marcadamente estas características (Lima, 2001).
Não afirmamos com isso que a musicalidade brasileira
se resume aos aspectos acima destacados. Herdamos,
com certeza, o gosto pela melodia que nos foi trazida
pelos portugueses e todas as influências italianas
incorporadas no decorrer do século XVIII; mas,
certamente, a frase sincopada, como ela se apresenta
em várias modinhas desse manuscrito, associada
ao staccato monótono da viola ou guitarra, confere
a elas um caráter muito particular, antecipando em
aproximadamente um século as características musicais
que vão ser associadas ao choro, ao maxixe
e, posteriormente ao samba, como ficou dito acima.
A partir dessas afirmações, podemos concluir que,
apesar de nossa dependência política, certas
características musicais e poéticas reputadas ao Brasil,
inclusive por portugueses já no último quartel do
setecentos, apontam para um direcionamento próprio,
pelo menos no que tange à produção musical.
Neste momento não podemos deixar de falar
do lundu, dança popular brasileira introduzida
no Brasil, provavelmente, pelos escravos angolanos,
muito popular em meados do século XVIII (Andrade,
1989). José Ramos Tinhorão descreve essa dança
já como um resultado da confluência de elementos
da cultura negra, portuguesa e espanhola e praticada
por negros e mestiços no decorrer do século XVIII
e XIX (Tinhorão, 1991). O lundu-dança foi descrito
por Tomás Antônio Gonzaga, um de nossos maiores
poetas inconfidentes, em uma de suas Cartas Chilenas,
atestando ainda mais a sua popularidade na época.
O lundu era dançado, tendo como
acompanhamento o batuque dos negros e
instrumentos já ocidentais, como a viola. Tornou-se
popular por seus elementos coreográficos: a famosa
umbigada, o sensual requebrado das ancas e os trejeitos
das mãos e estalidos dos dedos, elemento que Tinhorão
associa ao fandango Espanhol/ Português (idem, 1991).
A convivência entre negros livres e cativos, a classe
média e a corte, possibilitada pelos centros urbanos
emergentes, aproximou, seguramente, o lundu da
modinha e vice-versa. Essa convivência vizinha fez
com que a modinha absorvesse o estilo sincopado do
batuque do sensual lundu e este, por sua vez, as formas
musicais da recatada modinha, dando origem ao
lundu-canção. Estes lundus quase modinhas, ou estas
modinhas quase lundus, como destaca Mozart de
Araújo em seu importantíssimo trabalho A modinha
e o lundu no século XVIII (1963), são o maior exemplo
da fusão ocorrida, já no século XVIII, entre elementos
da cultura da classe média européia e da cultura
popular afro-brasileira.
É importante frisar que o lundu-dança foi utilizado,
já no século XVIII, em espetáculos para divertir
cortesãos e membros da classe média, tanto no Brasil
quanto nos salões de Lisboa. Isso torna evidente que,
apesar de seu caráter “licencioso”, como queriam
alguns, foi cultivado pelas classes mais favorecidas,
mesmo que em forma de espetáculo e mais estilizado,
e, certamente, influenciou músicos e poetas que não
poderiam ficar imunes aos seus feitiços.
Portanto, podemos caracterizar o lundu-canção,
doravante chamada apenas de lundu, como sendo peça

Domingos Caldas Barbosa.
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – DIVISÃO DE OBRAS RARAS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, M. de. Dicionário Musical Brasileiro. Belo Horizonte:
Itatiania, 1989.
________________. Modinhas Imperiais. Belo Horizonte: Itatiaia,
1980.
ARAUJO, M. de. A modinha e o lundu no século XVIII. São Paulo:
Ricordi Brasileira, 1963
BÉHAGUE, G. “Biblioteca da Ajuda (Lisbon) Mss. 1595/1596:
two eighteenth-century anonymous collections of modinhas”,
Anuário do Instituto Interamericano de pesquisa musical, vol. IV,
1968.
KIEFER, B. História da Música Brasileira: dos primórdios ao início
do século XX. Porto Alegre: Editora Movimento, 1982.
_________ . A modinha e o lundu: duas raízes da música popular
EDILSON VICENTE DE LIMA
Musicólogo, autor do livro “As modinhas do Brasil” - Edusp 2001. Mestre em musicologia pela Universidade do Estado de São Paulo.
Professor de História de Música e coordenador do curso de música da Unicsul.
MODINHA E LUNDU: BAHIA MUSICAL, SÉC. XVIII E XIX. BAHIA: Copene, s/d.
CANTARES D’AQUÉM E D’ALÉM MAR. SÃO PAULO: 1989
COMPOSITORES BRASILEIROS, PORTUGUESES E ITALIANOS DO SÉC. XVIII,
Américantiga, 2003
MARÍLIA DE DIRCEU.São Paulo: Akron, s/d
MODINHAS FORA DE MODA. São Paulo: Festa, s/d
MODINHAS E LUNDUNS DOS SÉCULOS XVIII E XIX.Lisboa. Movieplay, 1997
MÚSICA DE SALÃO DO TEMPO DE D. MARIA I. LISBOA: Movieplay, 1994
1900: A VIRADA DO SÉCULO. São Paulo: Akron, s/d
HISTÓRIA DA MÚSICA BRASILEIRA (II). São Paulo: Eldorado, s/d
NINGUÉM MORRA DE CIÚME. Belo Horizonte, s/d
VIAGEM PELO BRASIL. São Paulo: Akron, s/d
20 MODINHAS DE JOAQUIM MANOEL DA CÂMARA/Sigismund Neukomm.
São Paulo: BIEM, 1998
DISCOGRAFIA
brasileira. Porto Alegre: Movimento, 1977.
LIMA, E. de. As modinhas do Brasil. São Paulo: Edusp, 2001.
MORAI, M. Modinhas, lunduns e cançonetas. Lisboa: Imprensa
Nacional – Casa da Moeda, 2000.
NERY, R V e CASTRO, P F. História da Música. Lisboa: Imprensa
Nacional – Casa da Moeda, 1991.
NERY, R.V. in “Música de Salão do tempo de D. Maria I – CD”.
Lisboa: Movieplay, 1994.
SANDRONI, C. Feitiço decente: transformações do samba no Rio
de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed.:
Ed. UFRJ 2001.
TINHORÃO, J.R. Pequena história da música popular. São Paulo:
Art. Editora, 1991.
para voz solista ou a duas vozes, em compasso binário
simples, predominância da tonalidade maior, linha
melódica sincopada e geralmente composta por
fragmentos curtos e o esquema formal variado. Com
relação ao texto, há predominância do uso da quadra
com versos em redondilha maior e uso de refrão
(Kiefer, 1986). O tema, na maioria dos casos, continua
amoroso, porém no caso do lundu, há uma tendência
para a comicidade e a sensualidade (Sandroni, 2001).
No século XIX, encontramos lundus estilizados,
escritos em compasso binário composto, antecipando,
ou já dentro de uma tradição romântica.
Durante o século XIX, a modinha e o lundu, já
autônomos em suas manifestações musicais, tornam-se
verdadeiros meios da expressividade musical tanto
popular quanto erudita. Foi cultivado por músicos
como José Maurício e Marcos Portugal; também por
Carlos Gomes e, numa fase mais adiantada, por Villa-
Lobos, já com sentimentos nostálgicos nas primeiras
décadas do século XX. Na vertente popular, serviram
de suporte para músicos como Xisto Bahia
e a maestrina Chiquinha Gonzaga e porque não dizer,
de Tom Jobim e Chico Buarque. Ainda no século XIX,
incorporaram-se ao repertório de espetáculos
populares e serviram de crônicas à sociedade
de então, como no famoso lundu Lá no largo da
sé velha, que tece uma saborosa crítica à corrupção
51
e aos desmandos econômicos da época.
Finalizando, não obstante a origem aristocrática
da modinha, praticada, inicialmente, nos salões
cortesãos e nas casas dos senhores mais abastados,
aos poucos e numa convivência nem sempre tranqüila,
foi absorvendo características musicais e poéticas
das manifestações advindas das classes
econômicas menos privilegiadas, irmanando-se
ao seu parceiro inseparável, o lundu. Ainda nesse
caminho rumo a aceitação de todos, ambos,
a modinha e o lundu, folclorizam-se, talvez num último
passo para diluir-se na alma!

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